Pai de mais de 200 filhos, 'Pata Seca' viveu até os 130 anos em Santa Eudóxia

13/08/2017 09:42:00

Escravo reprodutor de 2,18 m de altura se tornou figura folclórica na região

ACidade ON - São Carlos
Pata Seca viveu 130 anos e teve mais de 200 filhos (foto: ACidadeON)

 

Aos 130 anos e deixando para trás mais de 200 filhos, morria em 17 de fevereiro de 1958 uma figura lendária no distrito de Santa Eudóxia: Pata Seca. Nascido no município de Sorocaba em 1827, Roque José Florêncio veio para a região após ser comprado, em 1849, por um fazendeiro para que exercesse a função de “escravo reprodutor”. Atualmente, estima-se que aproximadamente um terço da população do distrito possa ter descendência direta do homem.

Parte de sua família mais próxima ainda vive na região e lembra com carinho do parente: “É uma história muito bonita da qual temos muito orgulho”, explica a neta Maria Madalena Florêncio Florentino.

Escravizado, Pata Seca foi comprado pelo proprietário da chamada Fazenda Grande, em Santa Eudóxia, com base na crença de que homens altos e de pernas finas estavam mais propensos a ter filhos homens. Com altura de 2,18 metros, Roque era visto como uma ótima fonte de trabalho escravo para aqueles que o haviam adquirido. Segundo um estudo publicado pelo psicólogo Marinaldo Fernando de Souza na Unesp, o fato de Roque ser forte, alto, esperto e obediente lhe conferia algumas regalias. “Talvez isso o tenha ajudado a viver tanto”, ponderou a neta.

Segundo Madalena, o apelido veio de um batizado ocorrido na senzala, assim que o homem chegou de Sorocaba para morar na fazenda. “Deram esse apelido porque ele era alto e magro. Tinha mesmo 2 metros e 18 centímetros”, explicou.

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Madalena segura o retrato do avô (foto: ACidadeON)

 

Liberdade e família

Além da função de reprodutor, Pata seca também era responsável pelos cavalos da fazenda e realizava o transporte da correspondência para São Carlos. A neta lembra de que foi em uma dessas viagens que Roque conheceu a esposa, Palmira. “Ele sempre via minha avó varrendo a frente de uma casa. Um dia ele resolveu pedir que ela fugisse com ele, e ela aceitou. Vieram os dois para a fazenda e ganharam um pedaço de terra para começar a vida”, lembrou.

Com cerca de 20 alqueires de terra e após a abolição da escravatura em 1888, Pata Seca começou a construir a própria família ao lado de Palmira, com quem teve nove filhos. No chamado “Sítio Pata Seca”, passou a produzir e vender rapadura para sustentar a família, atividade que continua com a neta até hoje.

Além da rapadura, Pata Seca também fabricava utensílios domésticos, criava galinhas e plantava verduras para vender. Madalena lembra de uma cena cômica, quando o avô resolvia montar seu cavalo para se locomover. “Ele era tão grande que o pé dele alcançava o chão, mesmo montado no cavalo. O pessoal brincava que ele ia matar o cavalo desse jeito”, lembrou.

Outras lembranças de Madalena incluem as roupas, sempre brancas, utilizadas pelo avô. “Eram roupas brancas, tipo as que os escravos usam. Feitas com esse tipo de pano que temos para passar no chão hoje. Ele amarrava na cintura e na barra dos pés, e sempre andava inteiro de branco”, contou.
Além disso, a neta também conta um episódio em que o avô foi atacado por uma colônia de formigas.

“Ele vivia varrendo a frente da casa, no sítio. Era cheio de terra e ele varria tanto que conseguia deixar tudo limpinho, igual o chão de casa mesmo. Um dia ele estava varrendo e acho que encostou em um formigueiro, e juntou um monte de formigas subindo nele, por todos os lados. E eu lembro dele reclamando que foi picado, a roupa branca ficou quase toda preta com aquele tanto de formiga”, afirmou.

(Foto: Fabio Rodrigues/G1)
Pata Seca morreu aos 130 anos, em 1958 (Foto: Fabio Rodrigues/G1)

 

Morte e memória

Mesmo aos 130 anos de idade, Pata Seca não demonstrava sinais de enfraquecimento. Dessa forma, seria necessário um acidente para fazer com que o homem finalmente pudesse descansar. “Ele tinha uma cama feita de tarimba e colchão de palha de milho. Um dia ele acordou e, quando foi levantar uma tábua da cama, a madeira caiu em cima do pé dele e um prego enferrujado acabou acertando o dedão. Na época, ele fez um remédio caseiro que era usado na senzala pelos escravos, feito de fumo, urina e álcool. Não sei se ele descuidou, acho que uma mosca sentou no ferimento e deu bicheira. A dona Odete, que era curandeira, chegou a cuidar dele um tempo, mas ele acabou morrendo de tétano”, lamentou a neta.

No atestado de óbito, com data de 17 de fevereiro de 1958, aponta-se como causas para a morte a insuficiência cardíaca, miocardite, esclerose e senilidade.

Três meses antes de falecer, Pata Seca participou de um desfile em São Carlos, no aniversário do município, como o homem mais velho da cidade. Na ocasião, foi tirada uma das únicas fotos de Roque de que se tem conhecimento. Madalena conta que levou quase 10 anos para conseguir a fotografia, que hoje exibe com orgulho em um retrato na sala de entrada de sua casa.

“O melhor amigo do meu avô, o senhor Luís, guardava uma foto dele na carteira, dizia que era o grande amigo dele e queria tê-lo para sempre perto. Então eu pedi a foto para a filha dele, três vezes em um período de 10 anos, até que no último pedido ela me entregou com a condição de eu tirar uma cópia e devolver, porque para a família dela a imagem era considerada uma relíquia. Fazia mais de 50 anos que meu avô havia morrido quando eu consegui recuperar essa foto. Eles a enrolaram no papel manteiga e a foto estava perfeita, parecia que havia sido tirada no dia”, explicou Madalena.

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A venda de rapadura continua sendo feita pela família (foto: ACidadeON)

 

Legado

Para Marinaldo de Souza, a falta de documentos é prova da desvalorização da memória negra. Souza afirma que a história é verdadeira. Para ele, se Pata Seca fosse branco, e não negro, deixaria de ser uma lenda. “Mas, o que poderão nos revelar as memórias que pretendemos captar? Um esquecimento pela negação do sofrimento no período da escravidão? Será este, um esquecimento aparentemente espontâneo no qual os processos ideológicos estariam impedindo as lembranças que poderiam ameaçar a dominação e a autoridade das elites? Será o esquecimento fruto da destruição deliberada da memória contida em 58 documentos históricos, na literatura, na arquitetura e que colocou a classe dominante formada por fazendeiros locais no centro da História de formação da cidade, atribuindo aos trabalhadores escravizados e aos habitantes primitivos um local secundário? Ou ainda um esquecimento que se alia à necessidade de proteção psíquica, seja pela necessidade de consistência cognitiva, seja pela preservação da saúde mental”, questionou em seu estudo.


Seja pelas centenas de filhos que deixou, pelo tempo de vida que teve ou mesmo pelo notável porte físico que possuía, a figura de Pata Seca não dá sinais de que será esquecida tão cedo pelos moradores de Santa Eudóxia. Sobre os filhos que nunca chegou a conhecer ou conviver e a vida que levou antes de conquistar a liberdade, a neta lembra que talvez as atitudes do avô fossem um indicativo de como se sentia em relação à vida. “Ele era sempre assim, quieto, andava olhando para baixo, com feição séria. Falava pouco, mas era muito carinhoso com os netos e filhos. Não perguntávamos sobre os outros filhos que ele sequer conheceu direito, mas sabia que estavam por aí. Gostava muito de conversar com os amigos sentado em frente de casa, mas nunca perdia esse semblante, que às vezes dava até a impressão de ser triste ou apenas sério, mas sempre pensativo”, finalizou.
 



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