Nem ação judicial faz Daerp corrigir flúor irregular

25/03/2016 14:00:00

Uma de cada três análises apresenta concentração da substância fora do padrão recomendado

Matheus Urenha / A Cidade
Pequena Gabrieli teve quatro cáries no ano passado; população carente é a mais afetada pelo baixo flúor na água da torneira (Foto: Matheus Urenha / A Cidade)

Apesar de ser alvo na Justiça pela concentração irregular de flúor na água dos ribeirão-pretanos, o Daerp não consegue corrigir o problema. No ano passado, uma em cada três análises realizadas pela autarquia estava fora do padrão aceitável da substância, que é essencial na prevenção às cáries. Das 1,4 mil amostras coletadas, 35,5% estava irregular – o pior percentual dos últimos sete anos.

“Travamos uma batalha sem fim com o Daerp para regularizar a concentração de flúor, que é uma medida primordial de saúde pública. O número de análises fora do padrão é muito alto”, diz Renata Lollato, vice-presidente do Sindicato de Odontologia de Ribeirão.

A comunidade científica odontológica considera aceitável, no máximo, 20% de amostras fora do padrão.

Por conta da ineficiência em fornecer água com flúor ideal, o Ministério Público ajuizou ação civil pública no ano retrasado contra a autarquia. No último dia 29 de outubro, o Daerp protocolou na Justiça documentação em que prometia instalar dez dosadores eletrônicos nos pontos de tratamento até dezembro para amenizar o problema.

Até esta quinta-feira (24), porém, apenas dois equipamentos eletrônicos estavam funcionando. No restante dos outros 95 pontos de tratamento, os dosadores precisam ser regulados manualmente pelos funcionários e, devido às diferenças de vazão da água, acabam despejando flúor em quantidade irregular do que o previsto em lei.

“O custo dos dosadores é mínimo se comparado aos benefícios”, critica Renata. 
Além disso, dos 130 macromedidores (que medem o volume da água que sai do poço e a ajudam a definir a concentração de flúor adicionado) prometidos pela autarquia à Justiça para estarem funcionando até janeiro, só 80 estão instalados.

Consequências

O flúor em excesso causa fluorose dentária e, em deficiência, diminui a prevenção às cáries.

Marco Antonio Manfredini, secretário-geral do Crosp (Conselho Regional de Odontologia de São Paulo), alerta que a população carente é a mais prejudicada, pois muitas vezes a fluoretação da água é a única prevenção que contam contra as cáries.

Moradora da favela Mario Covas, Gabrieli, de 8 anos, teve cárie em quatro dentes ano ano passado. “Não quero ter nunca mais. Dói muito”.   

População carente é a mais afetada

Como a maioria das crianças, Gabrieli, 8 anos, adora doces. Não demonstra, porém, a mesma vontade para escovar os dentes. “Eu tenho que ficar em cima”, afirma a mãe, Ana Paula Coelho. Apesar das duas escovações diárias, a menina teve quatro dentes diagnosticados com cáries no ano passado.
“Minha boca ficou toda inchada”, diz a menina. Moradora da favela Mario Covas, na via Norte, ela realiza tratamento em um posto de saúde da prefeitura. No bairro, a maioria das crianças tem ou teve cáries.

Renata Lollato, vice-presidente do Sindicato de Odontologia de Ribeirão, alerta que nem todas as pessoas de baixa renda escovam os dentes diariamente como Gabrieli. “A população carente é a que mais sofre com a concentração irregular de flúor na água, pois em muitos casos é sua única proteção contra as cáries”.

Ela ressalta que a cárie vai muito além da dor de dente. “Pode ser a porta de entrada para bactérias e, ainda, influenciar na alimentação incorreta devido à dificuldade de mastigar, dificultando o desenvolvimento físico e psicológico das crianças”.

Arte / A Cidade

Processo em andamento

O processo movido em fevereiro de 2014 pelo Ministério Público contra o Daerp pela concentração irregular de flúor na água está na mesa da juíza Luísa Helena Carvalho Pita desde 11 de fevereiro deste ano aguardando decisão.  O promotor Sebastião Sérgio da Silveira propôs assinatura de TAC (Termo de Ajustamento de Conduta)  com a autarquia, mas o Daerp se negou a assinar. No ano passado, a juíza Lucilene Canella de Melo chegou a impor multa de R$ 50 mil diários à autarquia pelo flúor irregular, mas depois voltou atrás.

Stênio vê risco à saúde

Relatório produzido pela Vigilância Sanitária da prefeitura em outubro de 2013 e contendo a assinatura do secretário de Saúde, Stênio Miranda, alerta que “o padrão atual de concentração de flúor tem comprometido a qualidade da água destinada ao consumo humano, colocando em risco a saúde da população”. Naquele ano, o número de amostras fora do padrão foi de 30,7%. Já em 2015, foi de 35,5%. Questionado nesta quinta por meio de sua assessoria, Stênio não comentou os dados.

Crosp identifica ineficácia

Não são apenas as análises do Daerp e da Vigilância Sanitária de Ribeirão que alertam para o flúor irregular em Ribeirão Preto.

No ano passado, levantamento do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp) junto à USP e Unicamp apontou que, entre as 270 análises feitas no município em 2014, 75 (28%) estavam com concentração abaixo do preconizado pelo Governo Estadual.

Desse montante, 24 amostras apresentavam concentração de flúor tão baixa (menos de 0,4 miligramas por litro) que, para o Crosp, eram totalmente ineficazes à prevenção de cáries.

Uma dissertação de mestrado da USP da pesquisadora Cristina Penna Crispim também apontou, com base em análises da água de 145 residências ao longo de 2012, que o Daerp envia água com concentrações de flúor distintas para os bairros.

Ela verificou, por exemplo, que enquanto na Vila Tibério, zona Oeste, 56% das casas estava com concentração de flúor em desacordo com a legislação, no Campos Elíseos o percentual era de 8%.

‘Não há risco à saúde’

Em entrevista ao A Cidade, João Carlos Silva Ferreira, responsável pela seção de tratamento de água do Daerp, assumiu que o processo de fluoretação da autarquia é rudimentar, mas garantiu que está passando por um processo de modernização e que, apesar das amostras fora do padrão, não há riscos à população.

Ele diz que, todos os dias, o Daerp realiza análise em cada um dos 95 pontos de tratamento de água no município. Se a concentração de fluor não está adequada, em no máximo cinco horas o problema é corrigido.

Em 90% dos casos fora do padrão, a concentração de flúor estava abaixo do padrão, e não acima. “Não há nenhum risco à saúde e nem deficiência na prevenção às cáries, pois corrigimos o problema imediatamente.”

João explica que os pontos de tratamento possuem dosadores que despejam automaticamente flúor. A calibragem, porém, é manual, e leva em consideração a média de pressão e vazão dos poços. Como ambos não são constantes, a concentração de flúor adequada fica prejudicada.

Divulgação
Manchas e má formação dos dentes são características da fluorose dentária (Foto: Divulgação)

Ele diz que em dois pontos foram instalados dosadores eletrônicos inteligentes, que medem automaticamente a concentração de fluor e corrige eventuais erros.

Outros três pontos os dosadores serão instalados até o final de abril. Os outros cinco prometidos à Justiça estarão funcionando até o meio do ano. A meta, depois, é abranger todo o sistema. “A fluoretação totalmente adequada é nossa prioridade”.

Fluorose dentária

A ingestão a longo prazo de água com concentração de flúor acima do ideal pode resultar em fluorose dentária em crianças, que acarreta em manchas e má formação dos dentes. Isso ocorre principalmente com águas com concentração de flúor superior a 1,5 mg/l. Das 270 análises feitas pelo Crosp em Ribeirão em 2014, o máximo encontrado foi de 0,88 mg/l. Segundo o Daerp, 90% das análises fora do padrão é de concentração baixa de flúor, e não em excesso.

Análise>>>Alerta para correção dos problemas

O aumento do percentual de análises fora do padrão serve de alerta para que o operador do sistema de abastecimento de água corrija o problema. A fluoretação das águas é uma das principais medidas da Política Nacional de Saúde Bucal e uma das três bases da política de prevenção às cáries, que inclui também a escovação diária com creme dental contendo flúor e dieta adequada, sem excesso de açúcar. A fluoretação não fortalece os dentes, sua principal ação é impedir que o pH da saliva fique baixo, cenário que é propício para o desenvolvimento de cáries. Assim, para que tenha eficácia, é necessário que a concentração de fluor na água ingerida esteja constantemente adequada. Uma ou outra intercorrência eventual está dentro dos controles operacionais, mas as amostras fora de padrão não podem ser constantes. Cabe ressaltar que o custo-benefício do flúor é excelente. O custo médio por pessoa é de 10 centavos de dólar ao ano, e pode reduzir em até 75% os custos públicos com saúde bucal. Cabe ressaltar que a fluoretação da água ajuda na prevenção de cáries em todas as faixas etárias da população, e não apenas crianças. Atinge, principalmente, a população mais vulnerável, sendo muitas vezes a única medida de prevenção para elas.

Marco Antonio Manfredini, secretário-geral do Crosp



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