Prefeitura cancela exibição de filme após pressão de vereadores

19/09/2018 07:40:00

Rodrigo Simões e Gláucia Berenice protocolaram ofício contra exibição; secretária de Cultura vê 'criminalização do debate'

Documentário tem 1h10m e trata de diversos temas relacionados a feminismo, violência de gênero e diversidade. Prostituição e temática LGBT também são abordados (foto: reprodução)

Após pressão dos vereadores Gláucia Berenice (PSDB) e Rodrigo Simões (PDT), a Prefeitura de Ribeirão Preto anunciou ontem (18) o cancelamento da exibição do documentário "Primavera das Mulheres", que discute feminismo, gênero e diversidade. O filme faz parte de um ciclo de 117 palestras que abordam sete temáticas diferentes com recursos do Ministério da Cultura.  

A secretária de Cultura, Isabella Pessotti, afirmou ao A Cidade que se trata de "censura, criminalizando o debate com base em falso moralismo e agindo com fins eleitorais". E reforçou: "As pessoas querem tolher a consciência crítica, é o caldo da cultura do nazismo e fascismo".  

Veiculado pelo canal GNT no ano passado, o documentário traz entrevistas de youtubers, artistas, pesquisadoras e presença, até, de Marielle Franco (vereadora assassinada em março), abordando desde movimentos liderados por mulheres que tomaram as ruas e redes sociais até preconceito e cultura do estupro.

Licitação  

A licitação que contratará a empresa responsável pela exibição dos filmes do ciclo de palestras será feita amanhã, com valor previsto de R$ 69,5 mil. O valor total do projeto, incluindo locação de salas de cinema e transporte de alunos, é de R$ 550 mil. O edital diz que "o projeto prevê atender um público de 27.750 pessoas, alunos do ensino municipal, Fundet (Fundação de Educação para o Trabalho) e associações".  

Segundo Pessotti, o documentário seria exibido respeitando "rigorosamente a classificação etária indicativa, para jovens acima de 14 anos".
Apesar de a secretária defender a exibição, a Prefeitura informou, em nota, que o filme será suspenso. Até ontem à noite, o edital não havia sido modificado.  

Rodrigo Simões, em ofício protocolado anteontem direcionado ao prefeito Duarte Nogueira (PSDB), afirmou que "sexualidade é um assunto pertinente aos pais", sendo "dever da família o ensinamento", e diz que "os estudantes não são obrigados a assistirem filmes ou palestras com conteúdos impróprios, que denigrem a instituição família".  

A Cidade apurou que, para não desagradar parte da base aliada mais conservadora, o governo decidiu cancelar a exibição.

Pacote completo  

No ofício, o vereador também pediu que todas as palestras da temática "Gênero, Afetividade e Família, Relacionamento e Psicanálise" fossem excluídas do projeto. Em nota, a Prefeitura afirmou que elas serão mantidas, mas com "adequações".  

Gláucia disse que oficiou a Prefeitura no dia 6 contra o documentário. Segundo ela, o filme "incentiva a precocidade sexual e a prostituição".
Ouvida pela reportagem, Débora Piotto, professora da USP especialistas em Educação, defendeu que o poder público discuta sexualidade e diversidade em sala de aula.   

Documentário tem 1h10m e trata de diversos temas relacionados a feminismo, violência de gênero e diversidade. Prostituição e temática LGBT também são abordados (foto: reprodução)

 
adequações  

Em nota assinada pela Coordenadoria de Comunicação Social, a Prefeitura informou que "serão feitas as adequações necessárias e a exibição do filme será suspensa". O posicionamento não informa os motivos do cancelamento. Segundo o Executivo, serão exibidos "outros filmes correlacionados ao tema, respeitando a classificação indicativa".  

Apesar da pressão dos vereadores, a Prefeitura informou que manterá as palestras da temática "Gênero, Afetividade e Família". A nota diz que a lista prévia de filmes do edital de licitação "ainda passará pela aprovação da Secretaria Municipal da Educação", podendo ser alterada. 

Marp  

No início do mês, uma polêmica no Salão de Arte de Ribeirão Preto fez a rede estadual de ensino cancelar a visita de alunos de 6 a 7 anos ao local. O motivo foi um vídeo em que duas pessoas se tocam, considerado de cunho sexual. Segundo o diretor do Marp (Museu de Arte de Ribeirão Preto), onde a exposição estava, o televisor era desligado quando crianças entravam no recinto. 

Trechos do documentário: 

"Se você usar bermuda, tênis e camiseta, vai continuar sendo uma mulher. Mas a sociedade patriarcal não vai gostar dessa sua expressão de mulheridade e vai te taxar: assim você parece um macho", Eloisa Samy, advogada e feminista. 

"O que a gente não pode mais é ficar romantizando o assédio, como se fosse uma cantada. Ah, mas eu estou só dando um elogio. Assédio deixa a mulher se sentindo vulnerável, desprotegida e enojada. O medo é que o assédio das palavrinhas passe de verbal para físico", Ana de Cesaro, Youtuber. 

"Eu não gosto dessa expressão nasceu homem ou nasceu mulher. Nasceu nada. Homem e mulher são palavras da língua. Vão te criar para ser essa palavra (...) É uma luta de décadas para que mulheres trans sejam reconhecidas como mulheres", Amanda Moira, doutoranda em literatura e travesti.  

Secretária de Cultura Isabella Pessoti afirmou que o documentário Primavera das Mulheres debate diversidade, preconceito e violência de gênero (foto: Milena Aurea / A Cidade)

 
Falso moralismo, diz secretária 

A secretária de Cultura Isabella Pessoti afirmou que o documentário Primavera das Mulheres debate diversidade, preconceito e violência de gênero.  

"A violência contra a mulher mata. Reprimir um tema dessa relevância social é falso moralismo, com preocupação maior com votos do que com o estado de bem estar social. Não adianta bater palma para a Patrulha Maria da Penha (iniciativa da Guarda Civil Municipal de combate à violência doméstica) e, depois, impedir essa discussão".  

Ela chama de "censura" o movimento contrário à discussão e exposição de alguns temas. "Manifestações culturais são taxadas de imorais e pornográficas por quem não as compreende. Isso é o caldo da cultura do nazismo e do fascismo, de tolher a consciência crítica. É impedir o acesso à informação que faça pensar".  

Isabella lembrou, ainda, que estamos no "setembro amarelo", mês de prevenção ao suicídio. "É justamente pela ausência de discussão sobre genêro e diversidade que muitos não se aceitam ou são discriminados e tiram a própria vida".   

Vereadores, Gláucia Berenice e Rodrigo Simões (fotos: Milena Aurea e Matheus Urenha / A Cidade)

É necessário respeitar a família 

Rodrigo Simões diz que o documentário e a temática envolvendo sexualidade "não cabem" na educação pública. "O projeto [ciclo de palestras] é muito importante, mas a educação sexual é de responsabilidade dos pais, e não da escola".  

Segundo ele, o documentário seria passado para os alunos do Ensino Fundamental. A secretária de Cultura diz que a faixa etária de 14 anos seria "rigorosamente observada".  

Mesmo se fosse exibido apenas para jovens com mais de 14 anos, Rodrigo diz ser contrário. "Eu vi o documentário. É pesado, radical, extremista. É necessário ir mais leve, respeitar a família", afirmou.  

Gláucia Berenice aponta que o documentário fala "de forma contrária à família" e trata da temática sexual "de forma muito equivocada para adolescentes, incentivando prostituição e sexualidade preoce".  

"É um filme panfletário, que não deve ser exibido pelo poder público". Ela aponta que uma das entrevistadas se considera "travesti putafeminista" e outra "defende o fim do casamento na legislação". 

CICLO DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTÁRIOS E PALESTRAS  

Estão previstas 117 palestras, relativas a sete eixos:
Educação para o Consumo
Justiça e Cidadania
História e Política
Saúde Física e Mental
Meio Ambiente e Sustentabilidade
Comunicação e imprensa
Gênero, Afetividade e Família, Relacionamento e Psicanálise

Filmes previstos:
Primavera das Mulheres
Redemoinho 

Proposta do debate:  

"É recorrentemente abordado e polemizado nas diversas mídias as questões de gênero e a temática do feminismo em suas múltiplas interpretações. Apesar do constante debate, é importante ressaltar que ainda há muito a ser superado no que diz respeito às opressões e dificuldades vivenciadas no ambiente familiar, na escola e outros espaços sociais relacionados a temática do "Gênero, Afetividade, Família
e Relacionamento". Nesta perspectiva o presente tema é invocado para o debate junto ao público participante do projeto. 

Análise  

Sem debate, preconceitos são acentuados 

"Pesquisas realizadas desde as décadas de 80 e 90 do século passado já mostraram que quanto menos acesso à informação e quanto menor o contato com a educação sexual, maior é o risco de iniciação sexual precoce e seus problemas correlatos como gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis, entre outros. Assim, o que se tem é exatamente o oposto do que a onda conservadora que assola nosso País quer fazer crer: quanto menos se fala, mais se faz; e, quando isso ocorre sem informações, as chances de que essa ação tenha consequências ruins são muito grandes. Neste sentido, não abordar as temáticas de gênero e sexualidade na escola, além de promover e acentuar preconceitos e estereótipos, também vai contra um desenvolvimento físico e psíquico saudável. Agindo assim, estaremos negando a jovens e adolescentes o direito a um desenvolvimento pleno, direito esse previsto e garantido por lei".  Debora Cristina Piotto,
professora da USP de Ribeirão, coordenadora do Grupo de Estudos sobre Sucesso e Fracasso Escolar (Gesfe).  

Diretora do documentário  

Procurada pelo A Cidade, Antonia Pellegrino, diretora do Primavera das Mulheres, enviou a nota abaixo. Diz que "radical" é a decisão do cancelamento da exibição do filme em Ribeirão. Ela é roteirista há 14 anos e colaborou em cinco novelas e sete seriados, além de filmes como "Tim Maia":  

"Primavera das Mulheres é um documentário sobre as múltiplas vozes do feminismo atual. A acusação de que incentiva a prostituição e sexualidade precoce é completamente improcedente. Radical é o conservadorismo desta decisão. O Brasil de hoje confere centralidade à demanda por igualdade de gênero, como mostrou a pesquisa da ONU Mulheres lançada esta semana. 76% das entrevistadas e entrevistados declararam considerar extremamente importante que o governo federal promova o ensino de direitos humanos e direito das mulheres. Entre as mulheres, o percentual sobe para 80%. Alô, defensores de noções tacanhas como "escola sem partido" ou "ideologia de gênero". O Brasil quer, sim, falar de igualdade e direitos em sala de aula".




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