'Farra da hora extra' no Daerp já custou R$ 8,4 milhões aos cofres públicos

17/11/2014 09:38:00

Servidores da autarquia chegam a receber sete vezes o salário base com expediente extra de até 340 horas

Weber Sian / A Cidade
Autarquia diz que servidores fazem horas extras porque trabalham em regime de 'plantão' por conta do volume de atendimentos (foto: Weber Sian / A Cidade)

Servidores do Daerp (Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto) recebem valores referentes a mais de 300 horas extras por mês e, com isso, incrementam seus salários em até R$ 10 mil. A quantia, relacionada apenas ao tempo supostamente trabalhado fora do expediente, é superior aos vencimentos do superintendente da autarquia e dos secretários da prefeitura.

A “farra da hora extra” foi obtida pelo A Cidade por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A autarquia nega irregularidades, diz que a demanda por serviços é alta e que está tomando medidas para resolver a situação.

De janeiro a outubro deste ano, o Daerp desembolsou R$ 8,4 milhões apenas com pagamentos de horas extras. Para efeito de comparação, isso equivale a quase todo o orçamento da Secretaria de Meio Ambiente para 2015.

Quem mais engordou a conta bancária entre março e junho foi um mecânico de manutenção de bombas. Em quatro meses, ele ganhou R$ 32,4 mil pelas 660 horas extras realizadas. Em maio, ele recebeu R$ 10,2 mil – sete vezes o seu salário base, de R$ 1.433,43.

De acordo com a assessoria do Daerp, nesse período, ele foi chamado para realizar a troca de 42 bombas fora do seu horário regular de expediente.

Sem folga
Abril não foi um mês de muito descanso para um operador de sistema de água do Daerp. Segundo a autarquia, ele realizou 340 horas extras. Isso significa o equivalente a 14 dias seguidos trabalhados de forma ininterrupta, sem sequer um minuto de descanso.

Para cumprir isso ao longo do mês, ele teria de trabalhar 14 horas seguidas em cada um dos quatro sábados e domingos e, ainda, prorrogar sua jornada de trabalho por mais dez horas diárias em todos os seus 22 dias de trabalho restantes.

Assim, teria um expediente total de 17 horas de segunda a sexta-feira, com apenas cinco horas para dormir.

O Daerp diz que, em abril, esse servidor “estava dobrando o horário devido à falta de funcionários” e que nesse mês houve furtos de cabos em pelo menos cinco poços artesianos, “sendo necessário deslocar o servidor para tais locais”.

Já servidores ouvidos pelo A Cidade relataram irregularidades e favorecimentos nas horas extras.

Outro lado
O Daerp nega irregularidades e fraudes no pagamento de horas extras e diz não haver sindicância aberta apurando o assunto.

Segundo nota enviada pela assessoria de imprensa, a autarquia irá diminuir a realização de horas extras à medida que novos funcionários forem incorporados.

Um concurso público foi realizado no ano passado e os novos servidores estão em fase de treinamento.
Com isso, “os servidores que estão trabalhando em regime de plantão no atendimento à população retornarão para sua jornada normal de trabalho”, diz a autarquia.

A diretoria do Daerp ressalta ter reconhecimento pelos “servidores que executam atividades em períodos da madrugada para que a população não sofra com o desabastecimento de água”.

Segundo a autarquia, quando os trabalhos em regime excepcional ocorrem na madrugada os servidores são dispensados em meio período ou de forma integral no dia seguinte para que possam descansar.

Moeda de troca e fraude

Três funcionários do Daerp ouvidos sob anonimato pelo A Cidade disseram que as horas extras são moedas de troca dentro da autarquia. “Servem desde para compensar baixos salários até servir de ‘cala-boca’ para algumas reclamações”, afirmou um deles.

Segundo ele, os chefes de seção privilegiam a escolha dos funcionários que realizarão horas extras, com o objetivo de incrementar o salário. “Em alguns casos, um serviço que poderia ser feito na segunda-feira é realizado no domingo, justamente para ganhar o valor cheio do plantão”, diz. 

Eles afirmam, também, que os chefes de seção podem “liberar o cartão”, ou seja, permitir por meio de relatórios que os servidores tenham mais horas extras computadas do que de fato realizaram. O Daerp nega irregularidades.

Há denúncias, também, de favorecimentos. “Todo mundo aqui precisa de dinheiro extra para o final do mês, mas quem é desafeto da chefia acaba sendo escalado menos vezes para as horas extras”.

Os funcionários afirmam, entretanto, que a maioria deles acaba “vivendo dentro do Daerp” devido à falta de servidores. “Tenho que abrir mão da minha família para dobrar a jornada do trabalho. Senão a população fica sem água”.

Daerp demora quatro meses para dar resposta

O A Cidade requereu informações sobre as horas extras no Daerp por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) no dia 3 de julho deste ano, após receber denúncias de irregularidades.

Apesar da lei prever que a resposta seja fornecida em no máximo 20 dias, a autarquia enviou os dados apenas no dia 6 de novembro – 126 dias após a solicitação. O Ministério Público abriu em março um inquérito para apurar o descumprimento da LAI pela prefeitura.

Questionado sobre o atraso, o Daerp diz que “juntamente com a prefeitura de Ribeirão Preto, adotou um procedimento para execução e acompanhamento das demandas recebidas, a fim de cumprir com rigor as determinações da lei”.

Análise - Situação revela falha de gestão
A hora extra deveria ser uma excepcionalidade, conforme previsto inclusive pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Se de fato os servidores do Daerp estão cumprindo esse volume de horas extras, a autarquia está cometendo um grande equívoco. O correto, tanto do ponto de vista gerencial quanto trabalhista, seria contratar mais funcionários. A situação, como está, provavelmente interfere na qualidade dos serviços prestados, pois o desempenho dos funcionários será afetado. Vai contra, inclusive, as relações de trabalho do mundo civilizado. Além disso, a hora extra trabalhada é mais cara do que a regular, e o servidor poderá até incorporá-la posteriormente, causando prejuízos aos cofres públicos. Caso não haja irregularidades, há de fato uma má qualidade na gestão da autarquia. João Luiz Passador, professor da USP-RP e coordenador do Centro de Estudos em Gestão e Políticas Públicas Contemporâneas.

 



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