Bombeiros de Ribeirão Preto registram um trote por hora

03/09/2015 13:19:00

Pior: quase metade das ligações desnecessárias são feitas por adultos - o prejuízo é de toda a cidade

Arquivo/Tribuna Impressa
Trotes bloqueiam linhas de emergência, o que pode prejudicar o atendimento de ocorrências

O aposentado Carlos de Mattos, de 84 anos, e a doméstica Eliza Correia da Silva, de 52, têm algo em comum: ambos garantem nunca ter passado um trote sequer para a central do Corpo de Bombeiros e acreditam que a solução para tal problema está na raiz. “Aqui no Brasil, atualmente, vale tudo. Nossos governos falham e está faltando educação. É o tipo de problema que demora toda uma geração para consertar”, diagnostica Mattos. “É preciso mais campanhas para conscientizar as pessoas. Muitas vezes, as escolas não dão conta e os jovens de hoje raramente pensam em estudar. É uma questão de educação mesmo”, complementa Eliza.

E a preocupação não é para menos. Apenas nos sete primeiros meses deste ano, entre os dias 1º de janeiro e 1º de agosto, o telefone 193 da corporação registrou 5.076 trotes. Dos quais, 2,4 mil apenas em ligações feitas por adultos.

E os prejuízos de tais atitudes acabam sobrando para o próprio contribuinte, em função da queda de qualidade na prestação dos serviços essenciais dos Bombeiros.

“Os trotes mantêm linhas de atendimento de emergência ocupadas e dispõem do tempo do atendente em ocorrência falsa ao invés de atender uma ocorrência real – que, muitas vezes, poderia ser resolvida via telefone [engasgamento e reanimação cardiorrespiratória, primeiros atendimentos em queimaduras]”, lembra a tenente PM Oficial do Corpo de Bombeiros, Patrícia Alves.

Segundo a tenente, o tempo de atendimento às ocorrências reais também fica prejudicado, além de oferecer riscos aos próprios homens da corporação.

“Uma vez que ocorrência é despachada, as viaturas são encaminhadas ao local, proporcionando, assim, risco de acidentes (inclusive ocasionando lesões nos próprios bombeiros e civis), gastos com combustíveis e seus desgastes com pneus, óleo, entre outros”, explica. “Também ocorre a interrupção de treinamentos do efetivo operacional para chamadas falsas. Quando as viaturas estão em um local informado pelo trote e, no mesmo momento, acontecer uma ocorrência real, ocasiona, assim, um tempo-resposta maior até a chegada no local”, pontuou. 

Um processo de idiotização

Na visão do sociólogo Fábio Pacano, a educação entra apenas como um dos fatores do problema enfrentado pelo Corpo de Bombeiros de Ribeirão Preto. “A sociedade contemporânea passa por um processo de idiotização, infantilização. Adultos têm se portado de maneira infantil, negando o papel e os encargos da vida adulta. Agir como criança nada mais é do que uma consequência desse processo. Alguns pais deixam a criança tomar as decisões, algo que cabe a eles – por exemplo, quando a criança decide que não quer ir à escola e tem o consentimento do responsável”, explica.

De acordo com Pacano, tal mudança de comportamento pode ser explicada pela história. “No Brasil é algo crônico não assumirmos nossa culpa. Terceirizamos a culpa. Ao longo dos mais de 500 anos do Brasil, nunca conseguimos construir a esfera da existência pública. Vivemos juntos, mas de maneira privada. Por isso, tratamos a coisa pública como uma brincadeira. É algo nosso, mas não nos pertence”, explica.

A solução, segundo o sociólogo, está na ação do Estado perante os delitos. “É preciso que as pessoas sejam punidas como adultas. Uma situação de trote, por exemplo, gera o deslocamento de uma viatura. Então, o cara que fez a falsa ocorrência deveria pagar pelo combustível e pela manutenção do veículo, além de remunerar quem fez o serviço. Porque deixou de ser público para ser privado para quem passou o trote. Isso ajudaria muito a reduzir o número de trotes”, conclui.

Passar trote é crime – e dá cadeia

Passar trote, além das implicações já descritas pelo Corpo de Bombeiros, ainda constitui crime. O Código Penal Brasileiro, bem como a Legislação do Estado de São Paulo, preveem punições àqueles que forem acusados da prática. “O Artigo 265 especifica de um a cinco anos de reclusão por atentado contra serviços de utilidade pública. Já o Artigo 266 prevê de um a três anos de detenção por interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, radiotelegráfico ou telefônico. Vai depender muito da interpretação da promotoria acerca do caso em específico”, detalhou o advogado criminalista Hugo Amorim. “Já a Lei 14.738 de São Paulo propõe medida específica de multa a assinantes ou responsáveis por linhas telefônicas que originarem chamadas aos serviços essenciais, tais como a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros e o Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] relatando fatos inverídicos, ou seja, trotes. E a multa, hoje, seria de 67,21 Ufesps [Unidades Fiscais do Estado de São Paulo – R$ 1.428,21], fora as implicações já previstas no Código Penal”, adicionou.

Segundo Amorim, o trote telefônico é uma questão de direito coletivo. “É muito importante frisar que isso demonstra uma total falta de noção de coletividade e prejudica serviços que salvam vidas. Não reconhecer o direito do próximo, da coletividade, prejudicar o próximo faz o indivíduo se enquadrar no Código Penal. É preciso que as pessoas se conscientizem mais sobre essa situação”, conclui o advogado criminalista.



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