Detentos resgatam a cidadania através da leitura

26/04/2018 14:52:00

A ideia é que até o fim do ano a remição de pena pela leitura seja uma realidade em Araraquara

 
"O tempo é valioso e precisamos aprender isso". A reflexão baseada no livro Por onde você anda Robert?, do escritor Hans Magnus foi feita pelo detento Weid Nogueira Leandro, de 31 anos. Nos últimos três anos, ele leu mais de 100 livros e afirma que descobriu um prazer que pode mudar a vida de muitas pessoas dentro da Penitenciária de Araraquara, onde cumpre pena por tráfico de drogas.  

Weid é monitor do Clube da Leitura, que quinzenalmente reúne 20 detentos em torno de uma discussão sobre um título em comum. Em Araraquara, a atividade funciona há três anos e é organizada Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel (Funap), instituição vinculada à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), em parceria com a Fundação Palavra Mágica e faz parte do Programa de Educação para o Trabalho e Cidadania - "De Olho no Futuro".  

"A leitura mudou a minha vida. Primeiro eu descobri que gosto de ler, algo que não fazia lá fora. Depois me deu uma liberdade que eu não tinha: liberdade de expressão. Além da criatividade e o respeito. Posso dizer que eu me reinventei através da leitura", afirma.  

Weid é também responsável pela sala de leitura da Penitenciária, que tem um acervo de 3,6 mil obras. "Toda semana desce uma pasta com os títulos disponíveis e os detentos escolhem o que querem ler. Em geral, a leitura é um hábito no presídio. Hoje temos 300 livros emprestados", afirma.  

"Posso dizer que o programa mudou a minha vida. Eu era uma pessoa e hoje me transformei", reforça Weid, que trabalhava como motorista antes de ser preso e agora tem planos de cursar psicologia e se dedicar ao trabalho voluntário quando terminar sua pena. "Quero orientar as pessoas, para que muitos não errem como eu errei", diz ele.

Viajando
"A gente começa a ler e muda a visão da realidade, isso acaba moldando a gente. Em muitos livros, os personagens lutam para superar desafios, eles servem de inspiração", afirma outro detento que participa do Clube da Leitura, Jeferson André Martins, de 36 anos, preso há 1 ano e 8 meses por assalto. 

"Antes eu lia bastante a bíblia, mas agora leio tudo, sem preconceitos. Aqui dentro a leitura também tem o papel de tirar o nosso foco do mundo lá fora. Porque quando você chega aqui, não para de pensar no que está acontecendo no mundo e a leitura nos leva para outros lugares", afirma.

Em busca de parceria
"O Clube da Leitura tem por objetivo incentivar e aproximar o preso do universo literário como ferramenta no processo da cidadania", explica Silvio Luís do Prado, gerente regional da Funap.  

A ideia é que até o fim do ano a remição de pena pela leitura seja uma realidade em Araraquara, como já é em outros locais, como Ribeirão Preto e Casa Branca.  

"Estamos procurando uma parceria. Precisamos de uma instituição, uma universidade, por exemplo, cujos alunos e professores se responsabilizem por lerem o resumo que os detentos fizerem de cada obra e certificar que o contexto faz parte de determinado livro. Já conversamos com o juiz local e estamos em vias de implantar a remissão da pena em Araraquara dentro do Clube da Leitura", explica Prado.

O papa livros
Samuel Ribeiro Guimarães, de 31 anos é conhecido pela quantidade de livros que leu: 150. Se antes de entrar na detenção ele não tinha terminado de cursar a oitava série do ensino fundamental, dentro da penitenciária ele concluiu o ensino médio e também passou no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). 

Entre suas obras favoritas está a Série Millennium escrita pelo jornalista sueco Stieg Larsson. Mas ele gosta também de Machado de Assis e Jostein Gaarder, autor de "O Mundo de Sofia". 

"Eu gosto de ler tudo, porque acredito que todo livro nos ensina algo, nos enriquece, seja no vocabulário ou como ser humano", afirma.  

Samuel está preso há três anos por homicídio. Ele afirma que a vida na cadeia mudou completamente a visão que ele tem do mundo. "Só não se regenera quem não quer. Eu escolhi mudar", diz ele, que faz planos para cursar engenharia civil.

Anne Frank
Foi a fome de Samuel pelos livros que ajudou na organização de um feito inédito no presídio. No mês passado, o livro discutido pelos detentos no Clube foi "O diário de Anne Frank". A obra é um relato de 1947 da jovem judia que se escondeu com a família em um porão durante a ocupação nazista na Holanda, tentando evitar ser mandada para um campo de concentração.  

Fato é que Anne tinha uma amiga chamada Nanette Blitz Konig. Ela está viva e em um outro livro, que também tratava do assunto, Samuel encontrou um e-mail e o número de Spike de Nanette.  

"Fizemos contato por e-mail e ela prontamente respondeu e marcamos que no mês de maio, Nanette falará por Spike com todos os participantes do Clube da Leitura. E quem encontrou o contato dela foi o Samuel, em um livro disponível no nosso acervo", conta Valdete Gomes Ribeiro, responsável pela educação na Penitenciária de Araraquara.



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